Adoro Rubens Alves, seu estilo, sutileza, humor e acima de tudo a sabedoria que ele nos passa de modo simples e direto.
Por isso transcrevo, sem comentar o texto que se encaixa desde sempre sobre momentos,,,
Ostra feliz não faz pérola
Ostras são moluscos, animais sem
esqueleto, macias, que representam as delícias dos gastrônomos. Podem ser
comidas cruas, com pingos de limão, com arroz, paellas, sopas. Sem defesas –
são animais mansos –, seriam uma presa fácil dos predadores. Para que isso não
acontecesse, a sua sabedoria as ensinou a fazer casas, conchas duras, dentro
das quais vivem. Pois havia num fundo de mar uma colônia de ostras, muitas
ostras. Eram ostras felizes. Sabia-se que eram ostras felizes porque de dentro
de suas conchas saía uma delicada melodia, música aquática, como se fosse um
canto gregoriano, todas cantando a mesma música. Com uma exceção: de uma ostra
solitária que fazia um solo solitário. Diferente da alegre música aquática, ela
cantava um canto muito triste. As ostras felizes se riam dela e diziam: “Ela
não sai da sua depressão...”. Não era depressão. Era dor. Pois um grão de areia
havia entrado dentro da sua carne e doía, doía, doía. E ela não tinha jeito de
se livrar dele, do grão de areia. Mas era possível livrar-se da dor. O seu
corpo sabia que, para se livrar da dor que o grão de areia lhe provocava, em
virtude de suas aspereza, arestas e pontas, bastava envolvê-lo com uma
substância lisa, brilhante e redonda. Assim, enquanto cantava seu canto triste,
o seu corpo fazia o trabalho – por causa da dor que o grão de areia lhe
causava. Um dia, passou por ali um pescador com o seu barco. Lançou a rede e
toda a colônia de ostras, inclusive a sofredora, foi pescada. O pescador se
alegrou, levou-as para casa e sua mulher fez uma deliciosa sopa de ostras.
Deliciando-se com as ostras, de repente seus dentes bateram num objeto duro que
estava dentro de uma ostra. Ele o tomou nos dedos e sorriu de felicidade: era
uma pérola, uma linda pérola. Apenas a ostra sofredora fizera uma pérola. Ele a
tomou e deu-a de presente para a sua esposa. Isso é verdade para as ostras. E é
verdade para os seres humanos. No seu ensaio sobre O nascimento da tragédia
grega a partir do espírito da música, Nietzsche observou que os gregos, por
oposição aos cristãos, levavam a tragédia a sério. Tragédia era tragédia. Não
existia para eles, como existia para os cristãos, um céu onde a tragédia seria
transformada em comédia. Ele se perguntou então das razões por que os gregos,
sendo dominados por esse sentimento trágico da vida, não sucumbiram ao
pessimismo. A resposta que encontrou foi a mesma da ostra que faz uma pérola:
eles não se entregaram ao pessimismo porque foram capazes de transformar a
tragédia em beleza. A beleza não elimina a tragédia, mas a torna suportável. A
felicidade é um dom que deve ser simplesmente gozado. Ela se basta. Mas ela não
cria. Não produz pérolas. São os que sofrem que produzem a beleza, para parar
de sofrer. Esses são os artistas. Beethoven – como é possível que um homem completamente
surdo, no fim da vida, tenha produzido uma obra que canta a alegria? Van Gogh,
Cecília Meireles, Fernando Pessoa...
Alves, Rubem. Ostra feliz não faz pérola
. Planeta. Edição do Kindle.
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